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sábado, 21 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA. 21 DE MARÇO


Ainda está escuro quando o despertador toca. Bocejando vou ao banheiro. Na volta, pensando na roupa incluo os itens de EPI que estou usando: luvas, máscara e avental descartável.
Paro um instante. Penso que estou lembrando de algum filme que tivesse visto na noite anterior. Sabe quando a gente acorda no meio de um sonho e confunde os dois momentos? Pois é. Só que é de verdade.
Não me desespero, ainda falho no meio do protocolo de higiene que instaurei em casa. Pego o carro, começo a rodar. Ainda está amanhecendo quando vejo abnegadas trabalhadoras de um hospital caminhando, atravessando a rua olhando para os lados – cuidando quem fura o sinal vermelho e eventual agressor na rua? Percebo que aos poucos elas vão trilhando a mesma rota. Unidas, mas distantes. São elas, entre tantos outros, que vão se arriscar e cuidar daqueles que não se cuidaram debochando da gravidade do tema. A ignorância é uma merda...

Mais tarde, na feira, toda paramentada, vejo pessoas que sequer sabiam e reclamavam de não poder tocar nas frutas. Encontro um conhecido de rua desses que nem sabemos o nome, entende? Pergunto como está se protegendo, recomendo pelo menos usar luvas. Ele me responde: fotos? Jornal, TV? Tudo falso! Só acredito mesmo por que minha irmã mora na Itália e me conta. Por um segundo eu tento sorrir pois não haveria diálogo. Desisto e ele não veria, estou de máscara. Me despeço, sigo.

Esperando minha vez para a entrada improvisada em frente a uma barraca, uso o tempo para pensar, organizar ideias. Um senhor cuja esposa estava na banca, puxa assunto que vem ao encontro do que eu pensava. Sobre paciência. Tantas vezes pedi por paciência e veio algo que, de uma vez por todas, vai me ensinar sobre a arte da paciência. Já está ensinando. Percebi que é mais fácil do que eu imaginava. Não sei por que perdi tanto tempo.  Lembro da outra semana, quando passei 3 vezes pela mesma banca cheia esperando ter mais espaço para comprar o que precisava. Pacientemente eu fiz as voltas e, como de costume, esperava alguém se afastar para puxar o carrinho e ‘me servir’. Agora a paciência precisa ser ainda maior. Mais que paciência. Resiliência, empatia, vindas pela mão da sabedoria.

Usei avental descartável, mas os sábios organizadores abriram uma grande distância, entre outras providências, ampliando o ‘corredor. Também havia menos gente. Menos bancas. Não encontrei tudo que precisava.
Tenho lembrado muito de relatos ouvidos ou lidos de quem viveu em guerras. Algumas situações pontuais pelo país fizeram esse papel, mas não somos um povo que costuma ter memória, valorizar o aprendizado que advém dela. Cada vez mais isso fica claro. Lembro de um professor de italiano que, nos ensinando uma receita em aula, abriu um ovo e, com o dedo, tirou bem a clara que havia restado. Percebendo olhares de duas pessoas, ele virou e disse: na fome, a gente aprende a aproveitar tudo que existe hoje, pois não sabe se terá amanhã. Isso serve para tudo.

Fiquei pensando na última vez que abracei alguém. Talvez eu fique alguns meses sem dar a mão a alguém. Pelo menos ainda posso afofar muito o Perdido (os meliantes ficarei um tempo sem ver) que vai pouco na rua e quando volta, passa por higienização do focinho ao rabo. A gente achava que o ano 2000 seria uma marca. Mas o portal que pode fazer a diferença é agora. Quando teremos outra chance assim de evoluir como espécie?

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